Senhora do Livramento Livrai-me deste tormento De a não ver há tantos dias Partiu zangada comigo Deixou-me um retrato antigo Que me aquece as noites frias Senhora que o pensamento Corre veloz como o vento Rumando estradas ao céu Fazei crescer os meus dedos Pra desvendar os segredos Dum céu que não é só meu Senhora do céu das dores Infernos, prantos, amores A castigar tanto o norte Porque é que partiste um dia Sofrendo a minha agonia E não me roubaste a morte José Luís Gordo / Alfredo Duarte (Marcha do Marceneiro)
Desde manhã, os fadistas Jaquetão, calaça esticada Se aprumam com galhardia Seguem as praxes bairristas É data santificada Há festa na Mouraria Toda aquela que se preza De fumar, falar calão Pôr em praça a juventude Nessa manhã chora e reza É dia da procissão Da senhora da saúde Nas vielas do pecado Reina a paz tranquila e santa Vive uma doce alegria À noite, é noite de fado Tudo toca, tudo canta Até a Rosa Maria A chorar de arrependida A cantar com devoção Numa voz fadista e rude Aquela rosa perdida Da Rua do Capelão Parece que tem virtude António Amargo / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)
Vou fazer a descrição Dum café de camareiras Que havia na Mouraria Lembrar tempos que lá vão De fidalgos e rameiras E cenas de valentia Os rufias são atores No cenário da ralé Por isso ninguém se ilude Nós somos espetadores E o teatro é o café No cantinho da Saúde É bom que ninguém se afoite Vão se dar cenas canalhas Nestes antros de má fé Deram dez horas da noite Entrou a rusga, às navalhas Pelas portas do café O Pinóia da guitarra Fadista bem conhecido Pára de cantar o fado Há burburinho, algazarra E um fidalgo destemido Negou-se a ser apalpado Fadistas falam calão E uma camareira esperta Chegou-se com ligeireza Bem junto de um rufião Escondendo a navalha aberta Que ele espetara na mesa Depois da rusga abalar No café de camareiras Há movimento, alegria Há fadistas a cantar Várias cenas desordeiras Era assim a Mouraria Gabriel de Oliveira e Manuel Maria Rodrigues Marques / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)
Foi na velha Mouraria De ruas tristes, escuras Bairro antigo de mistério Que sorrindo de alegria Ou chorando desventuras Teve o fado o seu império Quando passo à Mouraria Em noite de chuva e vento Que é quando a tristeza impera Todo o meu sangue se esfria Se penso no sofrimento Do Custódio p'la Severa É que esse pobre aleijado Tendo no peito a fibra Da raça sentimental Era por ela mandado Tinha de ir beijar a mão Ao fidalgo, seu rival Dos seus lábios sensuais Um beijo voluptuoso Nunca o Custódio acolheu Por isso, ele sofreu mais Do que o próprio Vimioso Quando a Severa morreu Fernando Teles / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)
Amor é agua que corre Tudo passa tudo morre Que me importa a mim morrer Adeus cabecita louca Hei-de esquecer tua boca Na boca d'outra mulher
Amor é sonho, é encanto Queixa mágoa, riso ou pranto Que duns lindos olhos jorre Mas tem curta duração Nas fontes da ilusão Amor é agua que corre
Amor é triste lamento Que levado p'lo vento Ao longe se vai perder E assim se foi tua jura Se já não tenho ventura Que me importa a mim morrer
Foi efémero o desejo Do teu coração que vejo No bulício se treslouca Onde nascer a diferença Há-de morrer minha crença Adeus cabecita louca
Tudo é vário neste mundo Mesmo o amor mais profundo De dia a dia se apouca Segue a estrada degradante Que na boca d'outra amante Hei-de esquecer tua boca
Hei-de esquecer o teu amor O teu corpo encantador Que minha alma já não quer Hei-de apagar a paixão Que me queima o coração Na boca d'outra mulher Augusto de Sousa / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)
Eu lembro-me de ti, chamavas-te saudade Vivias num moinho, ao cimo dum outeiro Tamanquinha no pé, lenço posto à vontade Nesse tempo eras tu, a filha dum moleiro Eu lembro-me de ti, passavas para a fonte Pousando num quadril, o cantaro de barro Imitavas em graça, a cotovia insonte E mugias o gado, até encheres o tarro Eu lembro-me de ti, que às vezes a farinha Vestia-te de branco, e parecias então Uma virgem gentil, que fosse à capelinha Num dia de manhã, fazer a comunhão Eu lembro-me de ti, e fico-me aturdido Ao ver-te pela rua, em gargalhadas francas Pretendo confundir, a pele do teu vestido Com a sedosa lã, das ovelhinhas brancas Eu lembro-me de ti, ao ver-te num casino Descarada a fumar, luxuoso cigarro Fecho os olhos e vejo, o teu busto franzino Com o avental da cor, e o cantaro de barro Eu lembro-me de ti, quando no torvelinho Da dança sensual, passas louca rolando Eu sonho eu fantasio, e vejo o teu moínho Que bailava também, ao vento, assobiando Eu lembro-me de ti, e fico-me a cismar Que o nome de Lucy, que tens, não é verdade Que saudades eu tenho, e leio no teu olhar A saudade que tens, de quando eras saudade
Linhares Barbosa / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)
Desde que te ouvi dizendo Que sentimento em revolta Adeus amor acabou-se Os anos foram correndo O mundo deu muita volta E a vida modificou-se Ainda trago comigo Aquela cruz que me deste Tudo o que guardo de ti Cruz que tem sido o castigo A lembrar-me que esqueceste Tanta jura que te eu ouvi Não sei onde estás agora Nem sei se vives ainda Ou se Deus já te levou Eu sigo pla vida fora Sentindo a saudade infinda Dum amor que se acabou Moita Girão / Alfredo Marceneiro (Marcha Do Marceneiro)
Porque caio nesta angústia Que se arredonda no peito E que gela os meus sentidos Desfazendo assim o jeito Do encanto que desfeito Leva os meus sonhos perdidos Porque habitas dentro em mim Sem pedir sequer licença Contemplando minhas dores Dita de vez a sentença Pois eu recuso a presença Que matou tantos amores Porque traio assim meu corpo Na escuridão do meu quarto Onde vai meu pensamento Fico a sós e pouco a pouco Dispo o pranto e visto a noite Que sossega o meu lamento Fábia Rebordão / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)
Procurei-te pela praia Entre as flores da minha saia A gritar com as marés Molhei os olhos cansados Toquei de braços cruzados Cada marca dos meus pés Procurei-te junto ao rio Com a vida por um fio Porque queria guardar-te No meu colo arrefecido Trouxe o meu anel partido Pela noite a procurar-te Encontrei-te junto a nada No começo duma escada Mesmo à beira dum jardim Não há céu sem despedida Nem regresso sem partida
Sei que foste ter com ela Tantos foram os recados Para se encontrarem os dois Eu vi da minha janela Trocarem beijos e fados E o mais que veio depois
Dizem que ela tem a arte De manter acesa a chama Até vir a madrugada E eu nem quero imaginar-te Deitado na sua cama E eu toda a noite acordada
Se voltares, não digas nada Sobretudo o que não foi Que eu conheço o seu perfume Hás-de encontrar-me calada P? ra não gritar como dói A ferida do meu ciúme
Conta as lágrimas que correm Como um rio pelo meu rosto Pousa nele a tua mão Os grandes amores não morrem E a traição é fogo posto A arder no meu coração Maria do Rosário Pedreira / Alfredo Marceneiro ( Marcha do Marceneiro)