Foi numa pálida manhã de Outono Soturna como a cela dum convento Que num vetusto parque ao abandono Dei largas ao meu louco pensamento Cortava o espaço a lamina de frio Que impunemente as nossas carnes corta E o vento num constante desvario Despia as árvores da folhagem morta Folhas mirradas como pergaminhos Soltas ao vento como os versos meus Bailavam loucamente p'los caminhos Como farrapos a dizer adeus Das débeis folhas lamentei a sorte Mas reflecti depois de estar sereno Que bailar à mercê de quem é forte É sempre a sina de quem é pequeno Desde então, o meu pobre pensamento Fugiu para não bailar ao abandono Como a folhagem que bailava ao vento Naquela pálida manhã de Outono Henrique Rêgo / Alfredo Marceneiro (Fado Bailado)
Joguei-te um beijo, ganhei Deste-me o dobro depois Dei-te outro beijo, empatei Empatámos dois a dois Nas vastas leis do amor Onde os beijos fazem lei Como sou bom jogador Joguei-te um beijo, ganhei Ao veres meu rosto erguido Próprio dos grandes heróis P'ra que eu ficasse vencido Deste-me o dobro depois Procurei não ficar mal Fui nobre, impus-me, lutei Num arranque colossal Dei-te outro beijo, empatei Podes vencer-me, talvez Que o meu valor não destróis E agora à primeira vez Empatámos dois a dois Carlos Conde / Alfredo Duarte
Em tenra laranjeira ainda pequenina Onde poisava o melro ao declinar do dia Depois de te beijar a boca purpurina Um nome ali gravei, o teu nome Maria Em volta um coração também com arte e jeito Ao circundar teu nome a minha mão gravou Esculpi-lhe uma data e o trabalho feito Como sêlo de amor no tronco lá ficou Mas no rugoso tronco eu vejo com saudade O símbolo do amor que em tempos nos uníu Cadeia de ilusões da nossa mocidade Que o tempo enferrujou e que depois partiu E à linda laranjeira altar pagão do amor Que tem a cor da esperança a cor das esmeraldas Vão as noivas colher as simbólicas flores Para tecer num sonho as virginais grinaldas
J. César Valente / Alfredo Marceneiro (Fado Laranjeira)
Toma lá colchetes d'oiro Aperta o teu coletinho Coração que é de nós dois Deve andar conchegadinho P'ra ficar mais lindo ainda Teu coletinho de rendas Aqui trago minha querida A mais modesta das prendas Não quero que tu te ofendas Nem que tomes por desdoiro Não te ofertar um tesouro Digno de teu coração Mas dados por minha mão Toma lá colchetes d'oiro São minúsculas as estrelas Que se perderam no ar E a lua pra reavê-las Pôs de atalaia o luar Ainda as pude apanhar No meu nocturno caminho E fiz delas com carinho Estes colchetes, portanto Minha boneca de encanto Aperta o teu coletinho Se fores de noite à rua Deves guardá-los com jeito Não quero que a dona lua Toque ao de leve o teu peito Que eu sempre guardei respeito Pela grandeza dos sóis Mas vim a saber depois E fiquei compenetrado Que deve ser respeitado Coração que é de nós dois Henrique Rêgo / Popular Fado Corrido
Sentados nos degraus, ...* Dois velho aldeões , Mortinhos de saudade. Com palavras de amor, Candidas como as rosas, Lembravam com ternura, A morte anunciada. Nos olhos de um velhinho, E com doce lembrança, Transparecia o amor, Do tempo ja passado. E da velhinha avó, Emersa em confiança, Lembrava um par gentil, Em dia de noivado. Eu tenho uma ambição, Um grande e vasto sonho, Diz o velhinho envolto, De estatica doçura. Já que deus nos uniu, Neste mesmo lar risonho, Só peço que nos dê, A mesma sepultura. Henrique Rêgo / Alfredo Marceneiro *Duvidas na transcrição
É sempre tristonha e ingrata Que se torna a despedida De quem temos amizade Mas se a saudade nos mata Eu quero ter muita vida Para morrer de saudade Dizem que a saudade fere Que importa quem for prudente Chora vivendo encantado É bom que a saudade impere Para termos no presente Recordações do passado É certo que se resiste Á saudade mais austera Que á ternura nos renega Mas não há nada mais triste Que andar-se uma vida á espera Do dia que nunca chega Só lembranças ansiedades O meu coração contém Tornando-me a vida assim Por serem tantas as saudades Eu dou saudades alguém Para ter saudades de mim Carlos Conde e Alfredo Marceneiro (Fado Cravo)
Conta uma linda balada Que um rei, dum reino sem par Vendo morta a sua amada Quis o seu seio honrar E por molde, modelada Depois de gasto um tesouro Nasceu a graça encantada Duma taça toda d'ouro E quando por ela bebia Morto por se embriagar Saudoso, triste sorria Com vontade de chorar Certa noite imaculada À luz de um luar divino Deixou a corte pasmada E fez-se ao mar sem destino No mar ansiando a graça De com a morta se juntar Bebeu veneno p'la taça E atirou a taça ao mar Ao seu seio não há nada Que se possa igualar Nem a taça da balada Que jaz no fundo do mar Silva Tavares / Alfredo Marceneiro (Fado Balada)
Desde manhã, os fadistas Jaquetão, calaça esticada Se aprumam com galhardia Seguem as praxes bairristas É data santificada Há festa na Mouraria Toda aquela que se preza De fumar, falar calão Pôr em praça a juventude Nessa manhã chora e reza É dia da procissão Da senhora da saúde Nas vielas do pecado Reina a paz tranquila e santa Vive uma doce alegria À noite, é noite de fado Tudo toca, tudo canta Até a Rosa Maria A chorar de arrependida A cantar com devoção Numa voz fadista e rude Aquela rosa perdida Da Rua do Capelão Parece que tem virtude António Amargo / Alfredo Marceneiro (Marcha do Marceneiro)